Saturday, October 21, 2006


Para que ninguém a quisesse

(Marina Colasanti)

Por que os homens

olhavam demais para a sua mulher,

mandou que descesse a bainha

dos vestidos e parasse de se pintar.

Apesar disso, na beleza chamava a atenção,

e ele foi obrigado a exigir que eliminasse os decotes,

jogasse fora os sapatos altos.

Dos armários tirou as roupas de seda,

da gaveta tirou todas as jóias.

E vendo que, ainda assim,

um ou outro olhar viril

se acendia a passagem dela,

pegou a tesoura e tosquiou-lhe os longos cabelos.

Agora podia viver descansado.

Ninguém a olhava duas vezes,

homem nenhum se interessava por ela.

Ela esquiva como um gato,

não mais atravessava praças e evitava sair.

Tão esquiva se fez, que ele foi deixando de ocupar-se dela,

permitindo-a que fluisse em silêncio pelos cômodos,

mimetizada com os móveis e as sombras.

Uma fina saudade, porém,

começou a alinhavar-se em seus dias.

Não saudade da mulher.

Mas do desejo inflamado que tivera por ela.

Então trouxe-lhe um batom.

No outro dia um corte de seda.

À noite tirou do bolso uma rosa de cetim

para enfeitar-lhe o que restava dos cabelos.

Mas ela tinha desaprendido a gostar dessas coisas,

nem pensava mais em lhe agradar.

Largou o tecido numa gaveta, esqueceu o batom.

E continuou andando pela casa de vestido de chita,

enquanto a rosa

desbotava sobre um cômodo.

Thursday, October 19, 2006



Amigos Analgésicos



Cansei de amigos analgésicos. Pessoas que estão prontas para lhe oferecer aquele ombro amigo quando você está mal e nada está dando certo. Urubus da angústia que parecem esperar ansiosamente para que você caia para bancar o bonzinho e lhe oferecer algumas palavras de conforto, exatamente quando você está aceitando qualquer palavra. Criaturas dispostas a passar horas a fio ouvindo seus problemas só para ouvirem um “nossa...se não fosse você aqui...”.

Odeio tais seres profundamente, odeio, pois depois de viver um pouquinho não é difícil compreender que se eles só são companheiros quando você está mal - quando você finalmente fica bem, eles lhe viram as costas. A ruína do amigo analgésico é a cura, pois, curado, é possível ver quem realmente gosta de você. É possível discernir o certo do errado, sem as lágrimas que nos cegam. E é aí que o amigo analgésico se desfaz. Sua felicidade é algo doloroso demais para que ele suporte e é aí que ele parte para outra investida – sempre haverá alguém sofrendo no mundo e ele não pode perder sequer uma chance.

Em uma amizade, ninguém precisa de ninguém, ninguém TEM que estar em certas ocasiões para se denominar amigo. É uma questão de escolha. Estamos com quem gostamos por assim nos sentirmos bem, estamos sempre com quem gostamos pois assim somos felizes. Quando não se está em uma data especial na vida de alguém, é de se lamentar. Nem sempre podemos fazer o que queremos, vivemos em um mundo onde os interesses pessoais são sempre segundo plano. O mínimo que se pode ser é sincero. Não quis ir, diga. Desculpe-se apenas se assim lhe convier e se for verdade. Mas não jogue farpas ao seu amigo se ele ficar triste com você por querer sua companhia num momento de felicidade única de sua vida, não julgue sua falta perfeitamente desculpável simplesmente por você ter lhe sido analgésico quando ele estava mal. Você não está nas fotos do casamento dele, ele sequer ouviu sua voz num dos dias mais felizes de sua vida. Pouco a pouco, sua lembrança vai se esvaindo num grande band-aid gasto na lata do lixo.

18 de Outubro de 2006

Trilha Sonora: “J´en Connais" - Carla Bruni