Monday, December 11, 2006

Cativeiro

A mulher alí sentada, mero olhar dentre bundas que se amontoam, chora copiosamente pesando que finalmente entende o sentido desta expressão. Evita erguer o olhar, mas sabe que a observam, evitar soluçar alto para que o rapaz ao seu lado, expressão de cansaço de horas intermináveis de sonhos frustrados, acorde. Pensa, em reprovação, que nem agora,quando nada mais importa, consegue desvencilhar-se do eterno cuidado alheio, tenta pensar somente em si, pois somente ela restou, mas nem assim consegue, o colo úmido das lágrimas, o rosto ardendo dos tapas, os pulsos doídos das cordas.

O destino do coletivo lhe é desconhecido, mas as pessoas e suas vestes, as pessoas e seus olhares enegrecidos e bochechas forçosamente avermelhadas, como se fosse possível esconder quem se é com base e corretivo, só podiam dirigirem-se ao trabalho. E a mulher, em trapos, o decote rasgado, as marcas roxas nos braços, tanto destoava quanto perfeitamente combinava com aquele ambiente. Os rasgos na calça de marca da loira em pé ao seu lado não eram tão diferentes de suas vestes, o olhar de dignidade retirada que carregava em seus olhos parecia comum a todos.

Estava a mulher ali sentada fisicamente livre de seu cativeiro, mas observava as pessoas ao seu redor e sentia-se ainda mais presa. Procurava nelas correntes e cadeados e não os via, mas elas estavam ali. E isso a incomodava mais que a fome, mais que a sede, mais que o ventre ensangüentado a escorrer o que restou do lar do primeiro filho que jamais teria.

A moça loira percebe seu sangramento e, em pânico, informa as pessoas ao seu redor que rapidamente se amontoam sobre a mulher ali sentada que insiste em lhes dizer que não é nada, que está bem e repete isso até que o ar, cada vez mais escasso, totalmente lhe falte, até que os rostos pintados sobre sua cabeça se reconfigurem em manchas avermelhadas que se dissipam , sumindo...sumindo...

Antes de morrer, lembra-se do reflexo opaco no vidro do ônibus e imagina-se maquiada e bem vestida, mas volta rapidamente aos olhos lacrimosos e as cicatrizes. Quer, pelo menos em sua morte, sentir-se livre.

Jamie Barteldes

Para ler ouvindo: “Panis et circensis” - Mutantes

Imagem: "Henry ford hospital" - Frida Kahlo

4 comments:

Bruno said...

Será que ela agora é livre?

Interessante ver um tema mais sólido por trás do que vc escreve. falo isso com base em tantos textos que eu já li. Os antigos, lógico, não os contemporâneos. Bom texto, belo texto.

ah, e um abraço tb! :)

Jamie Barteldes said...

Não sei...você é livre? Eu sou livre? a liberdade é algo muito efêmero, algo muito dependente de ângulos.

Quanto ao tema mais sólido, e valha...:P Vez ou outra eu me aventuro num conto, mas nada de mais...não tenho paciência para longas narrativas.

Thiago said...

Muuuuuuuuito bom!
Acho que é o primeiro conto que te vejo escrever...

Eu não acho que a liberdade seja efêmera, mas perpétua... nós somos os que não a sabemos usar... pois, mesmo em cativeiro, se é livre pra pensar...

Hug!

Jamie Barteldes said...

Contos eu já escrvi um punhado, mas nhão gosto muito deles. Em geral são bem mais curtos do que eu queria, mais secos do que eu gostaria, mais cruéis do que eu intencionava.

Já quanto à liberdade, discordo de você. Nossos pensamentos em um cativeiro não vão além das grades se um dia não tivermos sido livres.
Isso me lembra uma cena do V de Vingança. Quando ela encontra uma cartinha escrita num pedaço de papel higiênico que fala sobre a liberdade e o amor e isso a mantêm viva. É meio como isso. O desejo de ser livre, somente ele, nos torna livres.